quarta-feira, 9 de julho de 2014

Um conhecedor da hospitalidade na teoria e na prática

Postado por Alexandre Panosso Netto e revisado por Tatiana Lima Sarmento Panosso

La hospitalidad pura o incondicional no consiste  en una invitación
y menos aún en una invitación sin nobleza de espíritu y codiciosa.
Sin esta hospitalidad, no habría surgido la concepción del otro, de la alteridad.
La hospitalidad-hospitalidad está de antemano abierta a todos,
cualquiera puede entrar en nuestras vidas,
aunque no se le espere y aunque sea absolutamente extraño,
inidentificable, imprevisible, cabalmente otro.* (Félix Tomillo Noguero)

Félix Tomillo Noguero, na FITUR, Madrid, 2010.
O profissional
Ser um praticante da hospitalidade incondicional é tão difícil quando ser um conhecedor das teorias da hospitalidade. Pois o Professor Doutor Félix Tomillo Noguero (28.06.1943 - 2.07.2014) tinha esses dois atributos: era um dos maiores conhecedores das teorias da hospitalidade e um praticante da hospitalidade até o seu extremo.
Javali, Tessera Hospitalis encontrada em Uxma, que fica sobre a mesa de trabalho de Félix, no escritório de sua casa.
Félix fez seus estudos infantil, primário e secundário no Colegio San José (PP. Jesuítas), em Valladolid. foi Licenciado em Direito (Universidad de Valladolid, 1965); Diplomado em Direito Internacional (Universidad de Valladolid, 1966); Licenciado em Ciências Políticas (Universidad Central, Madrid, 1967) e Doctor of Philosophy in Business and Management (University of Sussex, 1986).
2010.
Foi empresário, educador, co-fundador da primeira escola superior de turismo da Espanha, membro de organizações sociais, científicas, culturais, turísticas, empresariais, co-fundador da Associação Cultural Dança Espanhola, Titular da Escola de Dança de Valladolid, fundada em 1974 por Mariemma. Professor de vários mestrados em várias universidades. Autor de dezenas de artigos, capítulos de livros e livros relacionados ao turismo e à hospitalidade. Foi consultor da Organização Mundial do Turismo e da AMFORHT. Palestrante em dezenas de países, ganhador de muitos prêmios acadêmicos. O resumo de seu currículum vitae, apresentado em maio de 2014 à Universidade de São Paulo, por ocasião do convite feito para que fosse professor convidado da universidade, tem 21 páginas...

Primeira foto que fizemos juntos, em 2007, em Valladolid.
A amizade
Félix, como sempre o chamei, passou a ser meu amigo desde o primeiro dia que o conheci. Lembro-me bem, era 10 de julho de 2007, 12 horas da manhã, na rodoviária de Valladolid, Espanha. Era dia de meu aniversário e nosso contato foi um presente. Ali se iniciou uma amizade forte... a mais forte que eu experenciei...foi o meu melhor amigo.
Nossa primeira degustação de vinhos juntos, Bodega Legaris, Peñafiel, Espanha, 2007.
E não tenho consciência disso somente agora, chorando seu falecimento. Desde o início nós soubemos que nosso encontro foi algo que acontece poucas vezes na vida dos homens. Menos de um mês após nos conhecermos pessoalmente, já de volta ao Brasil após Tatiana e eu termos feito o Caminho de Santiago de Compostela, eu escrevi este email para Félix e sua esposa María. O email é de 9 de agosto de 2007 e tem como título "Muchas Gracias":

Amigo Felix (y Maria),
Sim, é incrível perceber que parece que nós já nos conhecíamos em nosso encontro em sua formosa cidade. Parece que já estivemos várias vezes juntos a desfrutar de agradáveis conversas e encontros diversos.
Para mim e para Tatiana uma das melhores coisas de nossa viagem foi conhecer a vocês - Felix y Maria - que nos receberam como perfeitos anfitriões. Isso foi muito importante para nós também. Interessante o modo como você percebe a hospitalidade dizendo que não é difícil receber ao adelphos - mas isso também é mérito de todos nós que nos reconhecemos nesse encontro como "velhos amigos". Uma sinergia importante!


O tutor
Além disso Félix foi meu pai, irmão mais velho, tutor intelectual, orientador, professor a cada momento. Ele não foi meu único tutor, mas foi aquele que tive mais contato após ter desenvolvido meu doutorado em 2005. Com ele desenvolvi meus estudos de pós-doutoramento em turismo na Universidad Europea Miguel de Cervantes - UEMC, em 2011. Aquele pós-doutorado, além do objetivo científico e acadêmico - e isso sei em meu íntimo - tinha como objetivo maior nos aproximar ainda mais. Nós realmente gostávamos de desfrutar da companhia um do outro.
Em uma de suas últimas conferências, em Paipa, Colômbia, novembro de 2013.
Tínhamos as mesmas ideias, nunca brigamos, éramos capazes de passar várias horas conversando sobre política, turismo, hospitalidade, história, filosofia, livros que lemos... se a conversa estivesse embalada por um vinho da Ribera del Duero, então poderia durar uma noite toda ou um almoço de 4 horas, o que fazíamos seguidas vezes.
Aqui ele estava ensinando a mim e a sua filha Maria a sacar os sabores, aromas e cores dos vinhos.
Aliás, Félix também me ensinou a apreciar e conhecer melhor os vinhos. Ele nos levou para conhecer as mais nobres regiões vinícolas da Espanha.
Almoço do dia das mães em 2011, com parte da família reunida, em Toro, Espanha.
Qualquer café tomado no balcão de um bar era um acontecimento com Félix. Chegava a durar uma hora pois, por incrível que pareça, sempre tínhamos assunto a tratar. Logicamente sempre aprendi mais do que ensinei.
O melhor café, e alguns dos melhores vinhos, tomávamos no restaurante Noche y Día, do amigo David Fernández.
Félix, María, Tatiana, em Aparecida, Brasil, em 2010.
O estudo do fenômeno turístico nos uniu
A maneira como nos conhecemos é interessante. Félix era professor no doutorado em turismo da Universidad Antonio de Nebrija, em Madrid. Lá trabalhava os temas das teorias do turismo e da hospitalidade, e sempre gostava de fazer aproximações à filosofia. No início de 2007, seu aluno mexicano, hoje também meu amigo, Ismael M. Rodríguez H., lhe indicou meu livro "Filosofia do Turismo; teoria e epistemologia", ainda em português. Félix em seguida me escreveu dizendo que havia lido o livro e me perguntou se eu estava disposto a discutir algumas ideias com ele. Naquele mesmo ano estávamos preparando nossa viagem à Espanha para percorrer o Caminho de Santiago de Compostela. Fizemos o caminho, mas a experiência mais marcante foi conhecer a ele e sua família.
Lançamento do livro "Principales tendencias de la investigación turística en España y Europa", de autoria de Marcelino Castillo Nechar, Félix Tomillo Noguero e Francisco José Garcia Gomez, em 2010.
Em seguida apresentei, por email, Félix ao amigo e colega de estudos turísticos, o mexicano Marcelino Castillo Nechar. Eles também se entenderam tão bem que em 2010 Marcelino fez seu pós-doutoramento na Espanha, e vocês já podem imaginar quem foi o tutor dele na Universidad Europea Miguel de Cervantes...
Félix tinha muitos amigos e colaboradores. Aqui na sala de sua casa comigo, com o mexicano Rafael Gutierrez Niebla e Francisco García.
Visita ao Brasil
Estivemos juntos em alguns congressos de turismo na Espanha, Portugal, Colômbia e Brasil. A segunda e última vez que Félix e Maria vieram ao Brasil foi a convite da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, nossa EACH-USP. Foi para a Jornada de Lazer e Turismo de 2010. Félix fez uma longa apresentação sobre megaeventos, especialmente sobre a FIFA e as possibilidades do evento no Brasil. Naquele momento ele debateu o tema do legado que o evento deixaria no país.
Félix e sua esposa María, após sua conferência em 2010 na EACH-USP.

Félix fez muitos amigos também no Brasil. Um deles, que o visitou mais de uma vez foi o Luiz Trigo.
Félix e Luiz Trigo no castelo de Peñafiel, Espanha, 2011.
Uma vez ele no Brasil, e eu querendo proporciornar a melhor experiência turística possível, perguntei a o que eles queriam conhecer do país. A resposta foi imediata: "quero ir à Amazônia e ver a floresta virgem". Ele justificou dizendo já havia estado no deserto do Saara, a região mais seca do globo, por volta de 1986, quando organizou a fundação da primeira faculdade de turismo do Norte da África, na Argélia. Queria então sentir o que era estar na região mais úmida do planeta.
Passeio do casal às margens do rio Tapajós, na confluência com o rio Amazonas, 2010.
De São Paulo voamos até Santarém, Estado do Pará. De lá fomos numa Kombi detonada a Belterra, pequena cidade americana fundada em 1928 para ser um pólo produtor de borracha. Nem bem chegamos e já fomos conhecer o rio Tapajós. Eles ficaram maravilhados com a temperatura agradável da água, com as praias de areia fina, limpa, macia, deserta... Em sua mente, eu sei, ele imaginou um grande projeto de desenvolvimento turístico local e sustentável... No dia seguinte meu pai e um amigo, que vivia na região, nos levaram para caminhar na floresta virgem e deixar a Félix e Maria abraçarem uma árvore.
Acredite: a curiosidade deles era tanta que tudo deveria ser explicado...(no meio da floresta).
Na caminhada pela mata um trajeto que duraria 30 minutos demorou 4 horas, tamanha a curiosidade deles. Lhes foi explicado o significado do nome de cada planta, de cada inseto, dos rastros que existiam, das frutas que caiam...e fotos...muitas fotos foram feitas. Ao verem uma castanheira se maravilharam, ficaram boquiabertos. 3 homens não conseguiam abraçar por completo aquela árvore.
A samauma com Rodrigo, Félix, Maria e Claudino, em 2010. Terra virgem, no meio da Floresta Amazônica.
Surpresa maior foi quando foram levados para conhecer a samauma, 'rainha da floresta'. Essa árvore uns 7 ou 8 homens não consegueriam abraçar. E assim, íamos conversando, estreitando relações, cultivando a amizade. Histórias de passeios, de conversas, de descobertas individuais iguais a esta temos muitas. Estão todas na memória, em nossas retinas, e algumas em videos e fotos.
Servindo cachaça brasileira a outro colega investigador Francisco Muñoz de Escalona y Lafuente, 2010.
Muitas histórias
Muitas histórias poderiam ser contadas, tal como aquela vez que em Salamanca, ao visitar um claustro de um colégio antigo nos vimos no meio de uma festa de gala e dela participamos provando ótimos vinhos...ou aquela vez que nos metemos nos esgotos de antigas cidades romanas, em Medina Sidonia....ou quando comemos como reis e pagamos valores de plebeus no restaurante o Cortiço, em Viseu, Portugal... ou quando fomos comer galinha caipira no interior da Espanha num restaurante caseiro e a dona nos deixou sozinhos no estabelecimento e avisou que a sobremesa estava na geladeira, pois tinha que sair por ter outro compromisso... Ou quando eu estava dirigindo seu carro em ruas com tráfego proibido no centro de Granada, Espanha, mas como éramos turistas, fomos perdoados das multas...
Com os filósofos mexicanos Napoleão Conde Gaxiola e Mauricio Beuchot, por ocasião do lançamento da revista Homo Viator. Alías, o nome 'Homo Viator' foi dado por Félix..., 2011, Valladolid.
Personalidade
Félix não se importava em estar up to date com o último celular ou computador; nem se preocupava com o novo software fosse o que fosse. Ele gostava do latim, do grego...contou-me que certa vez em Moscou fez uma conferência lendo o discurso em russo mesmo...
Almoço de comemoração à defesa de doutorado de Antonio Montecinos Torres, orientado pelo Dr. Manuel Figuerola, Universidad Antonio de Nebrija, Madrid, 2011.
Seus primeiros trabalhos ele escreveu em um máquina de escrever, logo usou um processador de texto e depois passou ao computador. Porém, continou sempre escrevendo como se estivese usando uma máquina de escrever. Utilizava tamanha força fazendo um som metálico alto, e por isso foram vários os teclados que tinham suas teclas furadas, tinham buracos, e as que não tinham buracos perdiam as letras nelas impressas.
Confesso que aos meus olhos Félix foi um homem clássico. Um dos poucos que conheci. Além disso foi generoso, íntegro e ético. Foi um investigador incansável e super curioso. Nunca desistia de encontrar uma referência a mais, um dado para complementar uma informação qualquer. Foi um investigador profundo, que ia às bases do conhecimento e não se contentava com informações de internet ou secundárias. Queria ele mesmo ler os originais dos livros traduzidos para ver se não havia algo errado...

Legado de seu conhecimento e obras
Neste momento é um pouco cedo para ter a dimensão do legado intelectual que Félix deixou.
Ele era perfeccionista, e sabia disso. Muitas de suas obras ainda estão inéditas. Entre elas está o livro "Las grandes religiones, la Biblia y el turismo", que foi apresentado em forma de conferência em 1993 em La Curuña, cujo original está aqui sob a minha mesa e que é um projeto que levarei a cabo. Esse trabalho, em impresso simples, estava perdido e tive a sorte de encontrá-lo entre os livros que foram doados à EACH.
Com outros colegas no Seminário ANPTUR 2010.
Outra obra é a própria tese de pós-doutorado que fizemos em 2011 com a colaboração de mais de 15 colegas e que está inédito.
Temos também um livro inédito sobre um dos grandes investigadores do turismo que está esquecido, Robert Glücksmann. Esse trabalho foi feito com ajuda da amiga Margret Jager, de Viena, que leu os textos em alemão e traduziu para nós.
Ele também estava envolvido num projeto internacional de pesquisa e produção científica dedicado ao tema da hospitalidade a convite da professora Ana Paula Spolon que é coordenado por ela e pelos professores doutores Luiz Octávio de Lima Camargo, Conrad Lashley. Os resultados deste projeto serão publicados nas revistas Hospitalidade e Journal of Research in Hospitality Management.
Com Keila Mota, em nossa casa, 2010, São Paulo.
No computador desktop de Félix, em sua casa, há inúmeros trabalhos escritos em espanhol totalmente inéditos. Por exemplo, o livro sobre "Fundamentos e Teoria do Turismo" que ele escreveu para dar aulas no doutorado da Antonio de Nebrija está apenas em sua máquina, sem publicação.
Creio que teremos muitas surpressas agradáveis quando tal material for publicado. Me esforçarei para que isso aconteça.
Félix ganha livro de Mário Carlos Beni e retribui com um quadro de uma Tábula Patronatus do ano 134. Seminário da ANPTUR, 2010, São Paulo.
Altruísmo e professor convidado da EACH-USP
Sua generosidade e altruísmo ficou bem evidenciado com a doação da biblioteca da antiga Escola Superior de Turismo de Valladolid, que ele fez a nós e que foi encaminhada para a EACH-USP. Você pode ler essa bonita história aqui mesmo no blogaqui outra postagem, no blog do professor Luiz Trigo, também outra postagem do professor Trigo, e no blog da TAM. São mais de 10 mil livros que ele nos doou.
Em maio de 2014 a Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP aprovou o processo-convite para Félix ser professor convidado entre agosto de 2014 e julho de 2015. Ele atuaria por 12 meses no curso de Lazer e Turismo e no Mestrado em Turismo da EACH-USP. Eu seria o professor responsável por ele no Brasil.

Despedida
Félix faleceu após dois meses tentando se recuperar de uma operação para retirada de um tumor no pulmão, o que acabou lhe custando um dos pulmões. 
Esta foi a última mensagem por email que ele me enviou, datada de 24 de março de 2014, tinha o título "ESTOY VIVO":
Desde finales de febrero, me estoy haciendo toda clase de chequeos médicos para ir a Brasil con vosotros con la salud bien revisada.
Hasta ahora todos los resultados han sido estupendos.
Pero, los neumólogos me detectaron un nódulo de 237 mm en el pulmón derecho y me operan pasado mañana, miércoles. Si Dios quiere, el postoperatorio dura una semana. En cuanto regrese a casa, serás, Alexandre, mi querido amigo, el primero de todos en tener noticias mías.
Salud, felicidad y un abrazo tan inmenso como mi afecto por ti,
Félix

Depois disso, ainda em junho de 2014, tive a oportunidade de estar em sua companhia em Valladolid. Desfrutamos juntos. Conversamos, mas aquilo não foi uma despedida. Quando o deixei, ele estava mais animado e eu acreditava que ele fosse se recuperar. Dois dias depois que o deixei ele sofreu uma parada cardiorespiratória e ficou em coma induzido. Saiu do coma, mas seu pulmão não suportou. Faleceu com um sorriso na face, escreveu-me sua filha María.

Homenagens
Muitas foram as homenagens pela passagem de Félix. Aqui está um post da Compañia DyD, e abaixo uma publicação do professor Carlos Belloso, no jornal Norte de Castilla.

Homenagens de seus amigos e mensagens foram inúmeras. Eu recebi e-mails de tristeza de gente de Cuba, República Dominicana, Costa Rica, México, Colômbia, Chile, Austrália, Portugal, Espanha, Reino Unido, Áustria e Brasil.
Amanhã, 10 de julho, fará 7 anos que nos encontramos pessoalmente pela primeira vez. 
Celebraremos com um bom vinho da Ribera del Duero. Beberemos em sua memória, Dom Félix, pois da nossa memória você não sairá.
Fiz essa foto num aparato de espelhos na FITUR de 2010, em Madrid.

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* Fonte da Citação no início da postagem: TOMILLO NOGUERO, Félix. La hospitalidad como condición necesaria para el desarrollo local. Revista Hospitalidade. São Paulo, v. X, n. 2, p. 161 - 212, dez. 2013.